no outro dia, você falava sobre o pensamento palíndromo, sobre os contrários, sobre forças opositoras - de invocar Eros nos momentos de morte. Londres é tudo que a gente conhece, ao revés. a esquerda vira direita, o que sobe, desce e vice-versa. sempre acho que preciso atravessar a rua para apanhar o ônibus para a direção certa, e então percebo que já estou na direção certa. isso me fez pensar também sobre as chaves e fechaduras ao redor do mundo. as chaves e fechaduras só funcionam na direção contrária daquilo que achamos que é.
sinto aqui um conforto acústico sem precedentes. sempre me dei bem com sons graves e sempre passei mal, literalmente, com high pitches, por isso, nem sempre consigo suportar impro jazz, é só por isso.
o som que sai dos british quando as palavras são indecifráveis, é algo como “ouahfaiêhâll". em nyc, não - e faz todo sentido, afinal, quem quer falar mais alto que todo mundo neste mundo? não que os ingleses estejam bem na fita, mas o fazem mais silenciosamente.
também não gosto de fazer o som do th de thank you com língua presa entre os dentes. prefiro falar thank you como se eu fosse falar tanque, tank you.
hoje me dei conta que as cidades enormes acomodam melhor as almas que gostam de silêncio e solidão. hoje entrei em muitos ônibus e estive sentada pensando por horas e horas. as big cities têm um movimento ao redor que sustenta os solitários, sem que a solidão fique insuportável. fica na medida, como eu gosto. as cidades-vila parecem te trancaficar num perímetro curto. 45 min em um ônibus que não te leva a lugar nenhum.
ontem cheguei em Londres e ontem eu ovulei. fazia tempo que eu não tinha prova física da ovulação, já não notava. é o sinal máximo da fertilidade que dá vontade de escrever, ouvir, passar batom, criar. e se puder transar, ótimo.
eu ouço palavras ao meu redor e repito-as com meus lábios para entender onde ponho a língua e qual a angulação do meu lábio para poder imitar. bábican. tótenhn reiol.
é bom comer os r - érres. é bom comer os as. é bom ter os tês de volta. citi. e não siri, para cidade.
hoje me perguntaram se eu era american, fiquei levemente ofendida e forcei todos os tês e todos os is pra ficar bem claro.
nossas falas e os nossos sotaques são inventados, mimetizados. sinto que tenho quatro anos em inglês, até os seis podemos mudar a fala.
você fala mais de língua e falo, eu falo mais das línguas e das falas. muitas vezes, estamos falando da mesma coisa.
te amo.
londres, 25 de maio de 2025, um dia antes do seu aniversário.
Fui a uma exposição no Barbican ontem que mexeu muito comigo. Ao invés de fazerem um documentário de música sobre a Acid House scene in the UK, fizeram uma experiência com Virtual Reality completamente surreal. Você entrava dentro de um carro e dirigia até o terreno escondido onde as raves aconteciam, no meio disso, mil coisas. Você ia pra delegacia para ver as investigações que buscavam criminalizar os donos das festas, escutava as entrevistas dos responsáveis pelos sound system, etc, etc, até finalmente chegar na warehouse com centenas de corpos dançando. você participa dessa experiência com mais 3 pessoas, e eu fiquei amiga de um casal que dançou comigo, e vamos tentar ir dançar na vida real na sexta-feira.
In Pursuit of Repetitive Beats - Barbican Center.
Que possamos trocar mais mil poemas, lookinhos, mudanças de cabelo, projetos, novidades, foto de crush, evento, música. fui olhar e nossas mídias trocadas são puro tesoro. tem falas, falos, falações mil.
London, London da Gal, óbvio.
E uma outra mais atual de outra estrangeira que vive em Londres > Astrid Sonne
Ontem fui no mercado Naz Organics e o dono era turco. Eu fiz uma compra muito maravilhosa, dill, hummus, feta, tudo que a gente gosta. E no final ele pegou um potinho cheio de baklava e me deu. Fazia MUITO tempo que eu não ganhava alguma coisa assim no comércio. E eu falei - for real? he said- yes.
fiquei muito emocionada e também sem jeito. depois, fui comer um gyros nesse lugar Grego que custa 6 pounds. Ele perguntou - for here or to go? Eu respondi - for here. He said- yesssssss. Era um desses restaurantes que as pessoas pegam e passam, não ficam. Ele trouxe meu prato e disse- more for you. Querendo dizer, que caprichou na porção pra mim. Perguntei como foi o seu dia, ele respondeu- WONDERFUL.
Fiquei pensando nesses sinais de abundância que não encontramos em todo lugar. Tem lugar que a gente é regular, frequente, e ainda assim, nada acontece. Essas ofertas vieram, so far, de pessoas que sabem o que é a imigração, e que atuam com a generosidade que só a imigração nos ensina. Estendemos a mão, a casa, a comida. Foi assim que te conheci, Flora, em mais um dos seus atos de generosidade.
Quando eu voltar a Lisboa, vou cozinhar pra você.
Feliz aniversário,
Bru.